Nota de editor: não obstante a extensão do texto, não dividimos a sua publicação por partes. É um texto de leitura obrigatória para quem queira conhecer a história que está por detrás do 7 de outubro, e que muitos, senão uma imensa maioria, desconhecem. Discutir um problema sem ter em conta o seu contexto não tem sentido. É infelizmente uma longa, dolorosa e revoltante história.
FT
Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
26 min de leitura
A história não começou em 7 de outubro. Retorno a 16 anos de prisão em Gaza
Publicado por
em 11 de Dezembro de 2023 (original aqui)
Nas últimas semanas, pelo menos entre os palestinianos e os seus apoiantes, foi frequentemente recordado que a história não começou a 7 de Outubro. Mas que história é essa? Várias temporalidades são possíveis: a do sionismo como projeto, a do apoio das potências imperialistas a este projeto, a da colonização da Palestina, etc. Thierry Labica propõe aqui um retorno aos 16 anos do bloqueio de Gaza, com os seus terríveis efeitos no plano humanitário e na estratégia posta em prática por Israel e pelos seus aliados de isolar politicamente o Hamas.
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Diante da força das negações contrárias à busca de compreensão contextualizada da sequência aberta pelos ataques de 7 de outubro e pelos crimes de guerra que marcaram esse dia, «a história não começou em 7 de outubro» vale de imediato mais como propaganda do que como simples confirmação. No que se segue gostaria de contribuir para responder a esta reivindicação e, por isso mesmo, libertar o acontecimento da religiosidade neoconservadora que tende a definir a sua apreensão «normal»: manifestação da essência maligna de um inimigo absoluto que autoriza então uma erradicação sistemática, cuja forma não é senão o empreendimento de natureza genocida a que assistimos há quase dois meses, no momento em que estas linhas são escritas.
É evidente que a história do isolamento de Gaza é mais longa do que aquilo que aqui é proposto. Tomou-se a decisão de partirmos do momento em que se intensificou o bloqueio à Faixa de Gaza após a vitória eleitoral do Hamas nas eleições legislativas de Janeiro de 2006, vitória que prolongava os êxitos eleitorais desta mesma organização nas eleições municipais realizadas entre Dezembro de 2004 e Dezembro de 2005. Trata-se aqui de recordar, ou apresentar, algumas das principais manifestações da tentativa de neutralização e sufocação punitiva dos processos políticos e diplomáticos que poderiam ter permitido à Faixa de Gaza sob o governo Hamas emergir como conjunto territorial, económica e institucional de pleno direito, e a esse título, como condição prévia indispensável à formação de um Estado palestiniano.
Ao chamar a atenção para vários aspetos do papel da comunidade internacional, em apoio à violência colonial israelita , essa contribuição não aborda nem pode tratar de pontos que a leitora e o leitor possam considerar cruciais. Pense-se, por exemplo, nas condições do reforço da audiência do Hamas sobre o fundo de colonização, concorrência e violência fictícia, no seio da Fatah, em especial nos anos pós-Oslo.
Pensa-se também, e sobretudo, nos diversos níveis de análise que exige a compreensão da trajetória complexa do Hamas, entre instituições sociais e caritativas (largamente autónomas), flexibilidade doutrinal, prática da violência, e pragmatismo, procura de reconhecimento e de participação políticas, nomeadamente com a tentativa de integração na OLP (2005) num objetivo de partilha do poder. Assim, contrariamente à ideia corrente de que o Hamas formaria um monólito integrista idêntico a si próprio desde a sua criação, manter-se-á aqui como geralmente adquirido que o Hamas não é um partido único, nem na sua história, nem na sua superfície e prática sociais e políticas, nem nos seus posicionamentos ideológicos.
De forma inteiramente previsível para uma organização desta importância, o primeiro Hamas não é o dos anos Oslo, que por sua vez não é inteiramente o da sequência eleitoral de 2004-2006, que não é o do momento da viragem mais rigorosa de 2009 e depois em condições que foram as do reconhecimento procurado e sistematicamente negado, do isolamento, das imensas destruições bélicas de 2008-9, da destruição avançada que atingiu o conjunto do sector sócio-caritativo ao qual estava associado, e mais geralmente, da desintegração então rápida das estruturas sociais da sociedade palestiniana (todos assuntos sobre os quais o trabalho da pesquisadora Sara Roy trouxe esclarecimentos indispensáveis, como veremos aqui).
No alinhamento global com a estratégia neoconservadora da «guerra ao terrorismo», não isenta de fanatismo religioso [1], durante os anos 2000, qual foi o processo de destruição política ao qual as últimas semanas oferecem um ponto máximo de catástrofe? Eis, pois, a pergunta à qual o que se segue tenta propor alguns elementos de resposta.
As eleições legislativas palestinianas de 2006 e as suas consequências imediatas
Em finais de Janeiro de 2006 realizaram-se eleições legislativas nos territórios, as primeiras em dez anos. Para os governos norte-americano e britânico, após a segunda guerra do Iraque e o derrube de Saddam Hussein, estas eleições pareciam inscrever-se num impulso democrático mais amplo no Médio Oriente («mudança de regime» no Iraque, eleições abertas no Egipto, presidenciais na Palestina). As condições do escrutínio (supostamente beneficiando a Fatah), o apoio e a ajuda financeira dos Estados Unidos aos candidatos não-Hamas, deviam confirmar a vitória esperada da Fatah e de Mahmoud Abbas. Na estratégia dos EUA, ficou claro que os processos eleitorais visavam a vitória de forças pró-americanas e pró-ocidentais.
Contra todas as expectativas, e no final de um processo eleitoral cuja regularidade foi reconhecida por todos, foi o Hamas que conquistou a vitória eleitoral. O Hamas viu assim a sua base eleitoral reforçada, depois de já ter ganho muitos lugares em eleições locais nos últimos anos. Como observa o historiador das relações israelo-americanas, Jerome Slater, estes resultados não eram de modo algum reveladores de uma hostilidade religiosa anti-israelita particular desta base eleitoral do Hamas. Esta votação exprimia a esperança de uma melhoria socioeconómica da condição dos habitantes de Gaza [2], esperança em parte inspirada por uma realidade da amplitude e da antiguidade das redes de obras sociais do Hamas. [3]
No entanto, este resultado provocou um profundo dilema, como explicou a especialista da região, Rosemary Hollis: para os Estados-Membros da UE que se tinham feito os defensores deste projecto democrático, como manter a ajuda financeira à Autoridade Palestiniana (AP) quando, de acordo com as suas próprias legislações, esta AP passaria a ser conduzida por uma organização que eles próprios tinham designado como terrorista apenas alguns anos antes. [4]
Nessa altura, havia políticos que não eram membros do Hamas dispostos a participar num governo liderado pelo Hamas, e no eleitorado que votou nesse partido havia uma maioria de pessoas que, por uma questão de pragmatismo, consentiam na solução de dois Estados [5]. O Hamas, força eleitoral, propôs alargar a constituição do seu governo no âmbito de uma coligação.
Além disso, como relata Jean-Pierre Filiu, Ismael Haniyeh, dirigente do Hamas, declara no Washington Post que «se Israel se retirar das fronteiras de 1967, estabeleceremos uma paz por etapas». J-P. Filiu precisa: «Diz-se disposto a reconhecer Israel, desde que o Estado hebreu se comprometa publicamente a «dar um Estado ao povo palestiniano e a reconhecer-lhe os seus direitos.» [6]
Nestas condições, o Hamas comprometeu-se a uma trégua de dez ou quinze anos a fim de «conhecer a verdadeira intenção de Israel», relata J. Slater. Ainda em 2006, Haniyeh, agora primeiro-ministro, dirigiu-se «secretamente ao presidente Bush para lhe pedir que pusesse fim ao boicote americano ao Hamas e se empenhasse «em negociações diretas com o governo eleito». Segundo o jornal Haaretz, esta carta exprimia receios pela estabilidade e pela segurança da região, repetia o consentimento a um Estado palestiniano nas fronteiras de 1967, propondo simultaneamente uma trégua de longo prazo e uma renovação «automática» do cessar-fogo.
Não foi a única mensagem desse tipo. Todas, explica J. Slater, foram ignoradas e, portanto, ficaram sem resposta e a posição de Washington permaneceu inalterada.
Em resposta ao novo assassinato de um líder do Hamas por Israel, «não só o Hamas não levou a cabo nenhuma retaliação, mas fez secretamente saber ao governo israelita que «se comprometeria a não conduzir nenhuma acção violenta contra Israel e impediria as outras organizações palestinianas de o fazer» desde que Israel ponha termo aos seus assassínios e ataques militares. Mesmo a Jihad islâmica declarou que estaria disposta a pôr termo aos seus ataques suicidas e aos seus ataques com foguetes se Israel cessasse os seus ataques.» [7]
O Hamas, na ausência de resposta, tornou públicas as suas posições. Em Fevereiro, Khaled Mechaal, membro do gabinete político do Hamas, declarou que o Hamas não se oporia à Iniciativa de Paz Árabe; a cimeira da Liga Árabe realizada em Beirute, em Março de 2002, retomou a proposta saudita de paz duradoura, reconhecimento e normalização das relações económicas e diplomáticas, em troca de uma adaptação de Israel ao direito internacional (retirada completa dos territórios ocupados em 1967 e solução para o problema dos refugiados). Numa entrevista a um jornal russo, Mechaal anunciava o fim da resistência armada em caso de reconhecimento dos direitos do povo palestino [8]. O Hamas reafirmou estas posições em Abril e Maio de 2006.
No entanto, mais uma vez, essas propostas, aberturas e compromissos da organização, que se tornou o principal ator político do momento, foram ignoradas, não sem um acréscimo de desprezo: as propostas do Hamas, segundo um porta-voz israelita, eram apenas «ginástica verbal», «astúcias». No final de Junho de 2006, Israel conduziu a operação «chuva de Verão». Este ataque militar seguiu-se por algumas horas ao anúncio do quadro negociado entre Haniyeh e Abbas para o estabelecimento de um governo de unidade nacional, e por alguns dias ao sequestro do soldado israelita Gilad Shalit. Depois veio a operação «nuvens de Outono» durante a primeira semana de Novembro. 82 palestinianos foram mortos («dos quais 50 civis, incluindo dois médicos, 10 mulheres e 16 crianças» [9]. Nesse mesmo ano de 2006, Israel matou 657 palestinianos, metade dos quais civis. Os palestinianos mataram 23 israelitas. [10]
Em 29 de Junho de 2006, o exército israelita procedeu à detenção de 64 representantes eleitos do Hamas na Cisjordânia (ministros, deputados, presidentes de câmara e quadros políticos), e em 30 de Junho, relatou Le Monde no mesmo dia, «o estatuto de residência em Jerusalém Oriental de um ministro e de três deputados palestinianos do movimento islâmico foi anulado, poucas horas após um ataque aéreo contra o Ministério do Interior em Gaza». O mesmo jornal dava conta da situação nos seguintes termos:
Enquanto Israel aperta o cerco aos líderes políticos e ativistas do Hamas com a intenção de derrubar o governo estabelecido após as eleições legislativas de janeiro, o primeiro-ministro palestiniano do movimento islâmico Ismael Haniyeh, tenta fazer frente a Tel Aviv, abrindo caminho para a diplomacia. [… ]
«Pensavam que isso poderia fazer cair o governo, mas nós dizemos-lhes: não destruirão a nossa escolha», acrescentou Ismail Haniyeh, em referência à eleição do Hamas nas eleições legislativas de Janeiro. As personalidades mudam, os responsáveis mudam, mas uma coisa permanece: as eleições e seus resultados. Qualquer governo que seja formado nos próximos quatro anos será formado com base nos resultados das eleições», insistiu o primeiro-ministro. [11]
Daí esta «ironia suprema» salientada por Sara Roy:
O Hamas tinha indicado muito claramente querer governar normalmente, sem sanções nem ameaças permanentes de ataques israelitas […] Mesmo antes da sua vitória eleitoral, o Hamas tinha efetivamente suspendido os seus ataques suicidas e observava unilateralmente o cessar-fogo proposto com Israel (cerca de dezoito meses) demonstrando assim a sua capacidade de pôr em prática um cessar-fogo quando Israel correspondeu fazendo o mesmo. […] [Hamas] também deixou claro que «cumpriria com qualquer acordo desde que ratificado por referendo popular». [12]
Alguns meses mais tarde, em Fevereiro de 2007, em Meca, foi alcançado um acordo entre a Fatah e o Hamas, na sequência de uma mediação do rei Abdallah da Arábia Saudita: o Hamas comprometia-se, reconhecer e aceitar acordos anteriores e formar um governo de unidade nacional. [13]
É igualmente notável que, durante esta curta sequência política charneira, muitos responsáveis políticos consideraram necessário tentar ultrapassar as prevenções e disposições já existentes em relação ao Hamas para reconhecer e incluir esta organização como ator político incontornável.
Foi o caso de Chris Patten, figura de primeiro plano da política externa britânica no momento da transferência de Hong Kong para a China popular [14]; membros do governo Blair da época, entre os quais Jack Straw, então ministro dos Negócios Estrangeiros e da Commonwealth, consideravam que a manutenção de intercâmbios diretos com os eleitos locais do Hamas relevava do seu próprio dever diplomático.
O próprio Tony Blair considerou que o Quarteto (ONU, UE, EUA, Rússia) devia aceitar, sob certas condições, o princípio de uma negociação com um governo de coligação que incluía o Hamas e que essa unidade política palestiniana era desejável e devia ser possível, pelo menos com os componentes mais moderados do Hamas [15]. Para Roy, em 2009, «se o Hamas de modo algum fala por todos os palestinianos, é inepto supor que o Hamas pode ser ignorado política e diplomaticamente». [16]
Recapitulemos algumas das principais características desta conjuntura de 2006.
O Hamas, uma organização frequentemente designada como terrorista desde o início da década de 2000 [17], participou nos processos eleitorais, obteve importantes sucessos eleitorais, propôs formar um governo de unidade nacional e respeitou o cessar-fogo de dezoito meses (março de 2005- junho de 2006) negociado com Israel, reconheceu os acordos anteriores, as fronteiras de 1967 e, portanto, do Estado de Israel (abstendo-se de qualquer retórica anti-judaica e de projeto de «destruição de Israel») e apresentou uma série de propostas de compromissos e aberturas em troca de compromissos sobre o reconhecimento dos direitos do povo palestino, o fim da ocupação e a construção de um Estado.
Em segundo lugar, muitos políticos chegaram a reconhecer o Hamas como um actor fundamental na situação, que deve ser incluído nos quadros políticos de negociação; os seus dirigentes são convidados a exprimir-se na imprensa britânica e americana.
Em terceiro lugar, entre silêncio e desprezo, o tandem israelo-americano dirigiu uma recusa total a qualquer proposta feita pelo Hamas e, desta forma, neutralizou o conjunto de possibilidades de construção do processo político concertado então ainda disponível e desejado, apesar da terrível adversidade reinante. Esta atitude, no entanto, foi apenas a condição prévia para uma estratégia de isolamento e estrangulamento do governo da Faixa de Gaza (e da sua população), à falta de ter conseguido derrubá-lo.
Boicote, desinvestimento e sanções da comunidade internacional contra o ocupado: primeiras medidas (janeiro de 2006 – junho de 2007)

Um boicote começou a ser posto em posto em prática em meados de fevereiro de 2006: na primeira reunião (em Ramallah) do parlamento recém-eleito, os parlamentares Hamas foram impedidos de viajar para a Cisjordânia e tiveram que acompanhar a sessão por videoconferência.
A nomeação de Ismael Haniyeh como primeiro-ministro para formar um governo foi imediatamente seguida de sanções financeiras: Israel suspendeu a transferência para a AP dos impostos cobrados por Israel sobre o comércio com Gaza e a Cisjordânia, medida denunciada pela ONU. Além disso, como já vimos, Israel procedeu à captura de 64 eleitos.
Os Estados Unidos, em ligação com Israel, e a comunidade internacional, logo cortaram Gaza do resto do mundo, deixando este território sem trabalho, sem comida e sem recursos. Privado dos financiamentos internacionais habituais, o governo já não dispunha dos recursos necessários para pagar os seus 162.000 empregados. Assim, no momento em que o Hamas «deixou claro que tencionava governar normalmente» o boicote iniciado em Junho de 2006 na sequência da constituição da plataforma governamental palestiniana «foi uma forma de punição coletiva contra o conjunto da população palestiniana e, tanto quanto sei», explica Sara Roy, «facto inédito na história deste conflito: a comunidade internacional impunha sanções ao ocupado e não ao ocupante».
Um pouco mais tarde, em 2008, tornou-se evidente que o governo Bush tinha preparado em segredo um projeto para derrubar o governo Hamas que deveria permitir a Abbas uma retomada do poder em condições de estado de emergência. A ministra de George Bush júnior, Condoleeza Rice, tentou convencer o Egito, a Jordânia, a Arábia Saudita e os Emirados a oferecer treino e financiamento a combatentes do Fatah. Um orçamento de 1,27 mil milhões de dólares em cinco anos foi previsto para esta empresa, da qual Mohammed Dahlan, já antigo contacto da CIA, era o principal intermediário.
Por seu lado, a UE, receando uma crise humanitária em Gaza e um colapso da AP, consolida a sua contribuição para a sabotagem pós-eleitoral numa montagem burocrática destinada a fornecer uma ajuda directa às populações contornando o governo Hamas: o Temporary Interim Mechanism (TIM) teve o estranho mérito de acumular crescimento da despesa humanitária e a degradação contínua da situação das populações que deveriam recebê-la. [18]
Confrontos violentos ocorreram em Gaza entre o Hamas e a Fatah na segunda semana de junho de 2007, sob a forma de uma guerra civil palestiniana. Ao repelir os combatentes da Fatah, o Hamas estabeleceu o seu poder em Gaza em 13 de junho. No mesmo dia, Abbas procedeu à dissolução imediata do governo de unidade e à demissão do primeiro-ministro Haniyeh. Além disso, Abbas anulou todas as decisões tomadas pelo governo Hamas e quatro dias depois, em 17 de junho, procedeu à nomeação de um novo gabinete. O boicote internacional imposto à AP pelos Estados Unidos e pela UE pôde então cessar e, por seu lado, Israel desbloqueou os 562 milhões de dólares de impostos devidos à Autoridade Nacional Palestiniana e que tinha retido até essa data. Ao mesmo tempo, o bloqueio da Faixa de Gaza controlado pelo Hamas iria prosseguir e intensificar-se, de acordo com uma lógica de perseguição, isolamento e destruição implacável.
A versão segundo a qual o Hamas “tomou” o poder pela violência em 2007 para estabelecer o seu domínio, não é digna de qualquer crédito, uma vez que ignora as várias modalidades de neutralização e cancelamento do processo eleitoral de janeiro de 2006. O ex-conselheiro neoconservador para o Médio Oriente do vice-presidente neoconservador Dick Cheney, o próprio David Wurmser, demitiu-se apenas algumas semanas após a batalha fratricida de 7 a 14 de junho de 2007, explicando que “me pareceu que o que acabara de acontecer não era tanto um golpe do Hamas mas sim uma tentativa de Golpe do Fatah, que foi impedida antes de acontecer” [19].
Para Sara Roy, ao escrever após os bombardeamentos de 2008-2009,
não pode haver um processo de paz credível com um governo palestiniano que exclua o partido eleito pelos Palestinianos para os governar. [… O Hamas não só permanece aberto à partilha do poder, como também tem uma história de acomodação e adaptação política não violentas, de reflexividade e transformação ideológicas e de pragmatismo político que o Ocidente deve acolher de forma positiva. O outro caminho possível promete ser portador de catástrofes, uma vez que se aproxima a ameaça de um reforço dos elementos mais regressivos dentro do Hamas, e de uma radicalização dos palestinianos em geral, na desestabilização de uma situação já carregada de tensões insuportáveis.[20]
5 de novembro de 2008: Gaza, laboratório de aniquilação social e económica
Na sequência da tomada do poder pelo Hamas em junho de 2007, vários países e entidades internacionais, desde Israel até à AP sob a presidência de Abbas, passando pela UE, Estados Unidos, Canadá e Egipto, trabalharam para administrar, com sofisticados meios burocráticos, o processo de cercar e colocar a população de Gaza em condições da mais extrema pobreza.
O que se segue pretende dar alguns exemplos salientes da estratégia que supostamente conduz a população de Gaza, através dos seus maus tratos generalizados, a voltar-se contra o seu governo, como se a enormidade da catástrofe humanitária iraquiana ligada às sanções aplicadas após a Primeira Guerra do Golfo não tivesse ensinado absolutamente nada a ninguém. A única hipótese credível para esclarecer este mistério: absoluta indiferença à morte em massa das populações árabes do Médio Oriente, uma hipótese verificada por uma famosa declaração de Madeleine Albright, chefe dos Negócios Estrangeiros de 1997 a 2001: meio milhão de crianças morreram, mas “o preço vale a pena” [o preço a pagar vale a pena].
Israel
Em 5 de novembro de 2008, Israel implementou as suas medidas de confinamento sistemático da faixa de Gaza. As mercadorias de todos os tipos (alimentos, medicamentos, combustíveis, papel, cola, chávenas de chá …) apenas eram deixadas passar em quantidades muito limitadas, ou mesmo a não deixarem passar nada, 4,6 camiões de produtos alimentares atravessaram a fronteira todos os dias durante este mês de novembro. Segundo a Oxfam, eram 123 todos os dias no mês anterior e, em dezembro de 2005, 564. Consequência quase imediata do bloqueio: cinco semanas depois, em 18 de dezembro, a UNWRA teve de suspender todas as suas distribuições de alimentos, quer no âmbito dos seus programas de distribuição de emergência ou regulares [21]. No entanto, durante o mesmo ano de 2008, já existiam 1,1 milhões de beneficiários de ajuda alimentar em Gaza, de uma população de 1,4 milhões de habitantes.
Uma lista de exemplos das privações infligidas aos habitantes de Gaza – e tudo o que inclui o suposto extremismo e a brutalidade desumanizante – seria demasiado longa aqui. Para tentar manter um elemento essencial que é sempre demasiado abstrato, temos de nos contentar em insistir no objetivo prosseguido pela política do Governo israelita e dos seus numerosos aliados e apoiantes: Gaza tem de ser esvaziada de qualquer dimensão política, tem de ser radicalmente isolada e dissociada da Cisjordânia a nível territorial, cultural, administrativo, social e económico, para ser reduzida a um estado puro de subsistência que permita relegar este território ao estatuto de uma questão humanitária estrita, a uma grande distância de qualquer consideração política relativa aos direitos humanos. Nisto, Gaza também pode ser considerada como um laboratório daquilo que Sara Roy analisou sob o conceito de “Des-desenvolvimento” [22].
Podemos compreender melhor esta prioridade, e a enormidade da agressão que ela induz, se levarmos em conta que Gaza é o coração político e o núcleo estratégico da Palestina e do nacionalismo palestiniano, o centro da resistência passada e presente. Como tal, Gaza representa uma ameaça política que vai muito além – e que há muito antecede – o Hamas. Por seu lado, Israel entendeu isso corretamente, e é por isso que Gaza está a ser marginalizada, diabolizada e punida por um cerco agora no seu sexto ano [em 2012]. Esta é também a razão pela qual Gaza continua a ser atacada [23].
Como Sara Roy indica, o New York Times de 15 de junho de 2007 informou que o primeiro-ministro israelense da época, Ehud Olmert, estava a preparar-se para dizer ao Presidente Bush qual era o desejo israelita: “fechar a Cisjordânia ocupada por Israel para protegê-la da infeção por Gaza“. Além disso, o sucesso eleitoral do Hamas, uma “organização terrorista”, foi um benefício para Israel, cujo projeto de confinar Gaza seria capaz de fornecer um sólido pretexto de segurança. Netanyahu, que regressou ao poder em 2009 (e que, já há muito tempo, tinha feito da “luta antiterrorista” o fundamento da sua visão política [24]), por sua vez seria capaz de aprofundar esta divisão ditando a alternativa deixada a Abbas e à Autoridade Palestiniana: a paz com o Hamas, ou a paz com Israel.
Em 2012, na sequência da campanha de bombardeamentos israelitas que acabara de terminar, assistimos, portanto, sem surpresa, a uma nova série de ameaças israelitas contra qualquer reconciliação e qualquer projeto de aproximação política entre o Hamas e o Fatah: a água e a eletricidade, já escassas, seriam cortadas em Gaza em caso de formação de um governo de unidade.
De um modo mais geral, do lado israelita, a sucessão de episódios de bombardeamentos pode ser entendida como uma aceleração da realização de um esmagamento social, económico e psíquico de Gaza já realizado no quadro “normal” da organização estratégica da escassez. Como um lembrete :
– em vinte e três dias, em 2008-2009, 1.400 palestinianos e treze israelitas foram mortos;
– em oito dias, em 2012, mais de 160 palestinianos e 6 israelitas foram mortos;
– em cinquenta dias, em 2014, 2.100 palestinianos e 73 israelitas (dos quais 67 soldados) foram mortos;
– em onze dias, em 2021, 260 palestinianos e 13 israelitas foram mortos;
– em três dias, em agosto de 2022, 30 palestinianos foram mortos.
Entre 2008 (“Operação Chumbo Fundido”) e 7 de outubro de 2023, a ONU registou 6.621 palestinianos mortos e 308 israelitas mortos (uma proporção de 1/21). Além disso, em 2008-2009, os atentados destruíram 1.500 oficinas ou fábricas; quase metade dos 122 serviços de saúde, incluindo 15 hospitais, foram danificados ou destruídos; 280 escolas e jardins de infância e 6.300 casas foram total ou parcialmente destruídas.
Em 2014, a operação “cintura de proteção” combinada com os efeitos do bloqueio levou a uma contração do setor manufatureiro em até 60%; o ataque no verão de 2014 causou a degradação ou destruição de 170.000 casas e deixou 100.000 pessoas desabrigadas. A isto devemos acrescentar as 5000 habitações destruídas durante os episódios anteriores e ainda não reconstruídas. Por conseguinte, cerca de 60% da população teve a sua casa danificada ou destruída entre 2008 e 2014. As Nações Unidas estimaram que 1.000 unidades de produção e oficinas e mais de 4.100 estabelecimentos grossistas e retalhistas, de restauração e de hotelaria foram destruídos e danificados. Assim, foi desferido um golpe particularmente duro aos sectores da alimentação, da indústria farmacêutica, das atividades de reconstrução, entre outros.
Os Estados Unidos
As políticas de apoio sistemático e multifacetado dos Estados Unidos a Israel (económico, militar, diplomático, etc.) são geralmente bem conhecidas e previsíveis. No entanto, isso não nos deve levar a subestimar as mudanças significativas que ocorreram, nomeadamente no processo histórico de identificação e fusão dos interesses israelitas e americanos, especialmente no contexto da viragem neoconservadora dos anos 2000 e da ascensão ao poder do sionismo cristão evangélico, que culminou no mandato de Donald Trump. Durante mais de uma geração, os dois países não pararam de formar um tandem singular de hostilidade aberta aos órgãos representativos da “comunidade internacional”.
No entanto, para nos atermos à sequência e ao processo de isolamento e abandono de que aqui estamos a falar, podemos pelo menos recordar os seguintes desenvolvimentos. Já em 2007, um dia depois de o Hamas ter sido finalmente instalado no poder em Gaza, procuradores federais atacaram aquela que tinha sido a primeira instituição de caridade muçulmana nos Estados Unidos, a Holy Land Foundation, acusada de financiar as atividades do Hamas, contribuindo para as suas muitas obras sociais e humanitárias.
Abolindo qualquer distinção entre as atividades do Hamas no sector social, numa sociedade de Gaza atingida pela pobreza, e as suas atividades militares face a forças determinadas a privar o Hamas do seu mandato como eleito, dois dos dirigentes da organização foram condenados em 2009 a sessenta e cinco anos de prisão cada um, e dois outros a vinte e quinze anos. Em 2008, três outras organizações caritativas muçulmanas foram acusadas do mesmo crime. O tribunal, embora reconhecendo as atividades humanitárias das três organizações, considerou-as culpadas de apoio ao terrorismo e aplicou-lhes uma multa de 156 milhões de dólares. A decisão foi anulada por um tribunal de recurso com base no facto de a ligação incriminatória ainda não ter sido provada. No entanto, outro tribunal confirmou a primeira decisão, considerando que a prova da ligação não era necessária. [25]
O ataque a todos os recursos financeiros necessários para manter os serviços sociais, educativos e outros em Gaza foi levado a cabo por todos os lados, incluindo a UE, como é óbvio. No entanto, assumiu uma dimensão particularmente dramática sob Trump. No final de 2018, os Estados Unidos terminaram o financiamento da UNWRA, da qual depende a manutenção dos serviços educativos, de saúde e sociais para os refugiados palestinianos em todo o Médio Oriente. Até então, os Estados Unidos tinham sido o maior contribuinte da agência, fornecendo entre 300 e 350 milhões de dólares por ano (um terço do orçamento anual da agência de 1,1 mil milhões de dólares). Estes cortes orçamentais foram particularmente catastróficos para Gaza, onde a UNWRA gasta cerca de 40% do seu orçamento na ajuda a quase um milhão de refugiados.
Em setembro do mesmo ano, os Estados Unidos anunciaram também a retirada de entre 200 e 230 milhões de dólares de financiamento de projetos de desenvolvimento em Gaza e na Cisjordânia, administrados pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID). A participação palestiniana em programas financiados pela USAID e pela Embaixada dos EUA em Israel foi também reduzida.
Canadá, Egipto
Em 2007 e 2008, o Canadá contribuiu com 28 milhões de dólares por ano para a UNWRA. Esta contribuição foi reduzida em quase 10 milhões de dólares em 2009 e depois em 4 milhões de dólares em 2010, atingindo 15 milhões de dólares. Três anos mais tarde, em 2013, o Canadá decidiu terminar com a sua contribuição financeira para a UNWRA. Este facto representou a maior perda de recursos para a agência até à data.
Este recuo canadiano reflectiu, por si só, uma orientação pró-Israel cada vez mais clara a partir de 2003 [26]. Embora o Canadá tenha retomado as suas doações depois de 2013, as posições assumidas pelo embaixador canadiano na ONU, Bob Rae, em outubro de 2023, mantêm esta orientação inequívoca. O boicote do embaixador canadiano à comemoração da Nakba na ONU, em maio de 2023, foi um sinal claro disso mesmo.
O Egipto tem uma longa história, que remonta ao final da década de 1970, de cooperação com Israel no encarceramento de Gaza. O Egipto (e a Jordânia) contribuíram ativamente para a tentativa de derrube armado do governo do Hamas em 2007. A Faixa de Gaza teve um breve momento de descanso durante a curta transição para o poder de Mohamed Morsi e da Irmandade Muçulmana no Egipto, entre 2011 (e a obtenção de uma maioria parlamentar) e o golpe de Estado de Sissi em junho de 2013.
A comparação proposta no Middle East Eye em 2016 por Ahmet Al-Burai entre a posição de Morsi sobre a questão de Gaza e a de Sissi merece ser citada longamente:
O Egipto de Abdel Fattah al-Sissi não só cede às pressões israelitas e americanas para isolar a Faixa de Gaza, como recomenda a extensão das sanções e dos meios de subjugação. Morsi, por seu lado, trabalhou incansavelmente para aliviar as condições sufocantes e o bloqueio desumano imposto à população do enclave costeiro durante mais de dez anos. No seu primeiro ano no poder, aliviou as restrições à passagem dos palestinianos no posto fronteiriço de Rafah, no sul de Gaza. Morsi manterve-se firmemente indisponível para transigir com as atrocidades de Israel.
Desde que Sissi tomou o poder através de um brutal golpe militar, o Egipto tem apoiado inequivocamente a posição do governo extremista de Israel contra a vizinha faixa de Gaza. Bizarramente, durante a última guerra contra Gaza, Azza Sami, editor-chefe adjunto do Al-Ahram, o jornal estatal mais lido do Egipto, aplaudiu abertamente o primeiro-ministro israelita: “Obrigado Netanyahu, e que Deus nos dê mais líderes como tu para podermos destruir o Hamas” [27].
Como o site de al-Jazeera e Tareq Baconi salientaram mais recentemente, o Cairo é conhecido pelo seu papel de mediador chave entre Israel e o Hamas nos últimos anos, e a contribuição do Egipto para a reconstrução das infraestruturas destruídas em Gaza após os bombardeamentos de 2021 foi também significativa (500 milhões de dólares). Mas o Egipto também participou no bloqueio da Faixa de Gaza e na destruição de túneis que são de importância vital para aliviar os efeitos do bloqueio na circulação de mercadorias (e não apenas na questão das armas).
A Autoridade Palestiniana
A AP de Mahmoud Abbas também desempenhou um papel considerável no agravamento da situação em Gaza, para além dos acontecimentos de 2006-2007. Em julho de 2017, a fim de pressionar o governo do Hamas a abandonar o controlo do território, o Presidente Abbas decidiu despedir 6.145 funcionários que trabalhavam na educação, na saúde e noutros serviços públicos em Gaza.
Ao mesmo tempo, a AP continuava a recusar-se a pagar os salários dos 50.000 funcionários administrativos de Gaza que trabalhavam para o governo do Hamas, enquanto continuava a pagar os salários dos seus próprios 70.000 funcionários públicos em Gaza, que não trabalhavam desde 2007, quando o Hamas expulsou a Fatah do território. A operação custou entre 45 e 60 milhões de dólares por mês, financiada pela Arábia Saudita, a UE e os Estados Unidos.
Um pouco antes, em abril de 2017, a AP já tinha adotado medidas punitivas: cortes substanciais nos salários dos funcionários públicos, alguns dos quais receberam apenas 30% do seu salário habitual, mas também cortes de eletricidade ou restrições aos serviços médicos e ao financiamento da saúde.
Por fim, há que mencionar, pelo menos, a forma como a divisão entre a Cisjordânia (sob controlo da Fatah) e Gaza (governada pelo Hamas) e a ostracização geral de Gaza foram ainda mais reforçados pela consequente canalização dos fundos dos doadores para a Cisjordânia.
Consequências: algumas referências
Antes da tomada de poder do Hamas em Gaza, em junho de 2007, cerca de 54% do emprego em Gaza estava no sector privado, segundo o Banco Mundial. Entre junho de 2005 e setembro de 2008, o número de unidades de produção em funcionamento em Gaza diminuiu de 3.900 para 23 (vinte e três), ainda segundo o Banco Mundial: cerca de 100.000 pessoas, incluindo 40.000 trabalhadores agrícolas e 34.000 trabalhadores industriais, ou seja, praticamente todo o sector privado, perderam os seus empregos. De acordo com o Banco Mundial, o bloqueio provocou, por si só, uma queda de 50% do produto interno bruto de Gaza entre 2007 e 2015. A Faixa de Gaza ficou, assim, paralisada [28].
Entre 1999 e 2008, o número de famílias que receberam ajuda alimentar da UNWRA aumentou de 16.174 para 182.400 (ou seja, 860.000 pessoas). Ao mesmo tempo, o Programa Alimentar Mundial estava a alimentar 302.000 habitantes de Gaza. No total, 1,1 milhões de habitantes de Gaza, de um total de 1,4 milhões, já estavam a receber ajuda alimentar em 2008. Nestas condições, registou-se um claro enfraquecimento das estruturas familiares e da solidariedade e uma explosão dos problemas de sofrimento mental, depressão e traumas psicológicos, em particular entre as crianças: das 221 escolas da UNWRA, 161 ofereciam programas de apoio psicológico, que ainda estavam muito aquém das necessidades conhecidas.
No final de 2010, o nível de insegurança alimentar tinha aumentado para 61% da população de Gaza. Em 2003, era de 40%. 900.000 pessoas, de uma população total de 1,5 milhões, não dispunham de meios suficientes para comprar o mínimo necessário para uma dieta considerada adequada para si e para as suas famílias e outras 200.000 eram consideradas em risco de insegurança alimentar. 75% das famílias de Gaza estavam já dependentes de alguma forma de assistência humanitária.
Nestas condições de empobrecimento extremo, de pressão intensa sobre o conjunto da sociedade de Gaza e de ausência total de perspetivas, assistiu-se, sobretudo a partir de 2014, a um aumento dos problemas de violência doméstica, de divórcio, de prostituição, de toxicodependência, que se tornaram muito menos excecionais, e de suicídios, incluindo de crianças. A isto juntou-se um aumento da audiência e do apelo a fações armadas como o Estado Islâmico do Levante (que se opõe ferozmente ao Hamas), não tanto por convicção, mas pelos poucos rendimentos que dali podem ser retirados [29].
Em 2017, muitos especialistas previram que a Faixa de Gaza poderia ser simplesmente inabitável até 2020. Uma expressão do desespero induzido por esta opressão multifacetada foi a Grande Marcha do Retorno, iniciada em março de 2018, um protesto simbólico e pacífico. Entre 30 de março de 2018 e setembro de 2019, 210 palestinianos foram mortos, incluindo 46 crianças, e seis israelitas foram mortos. Mais de 35.000 pessoas ficaram feridas e mutiladas, e sofrerão incapacidades permanentes agravadas pela inadequação ou ausência de cuidados médicos adequados.
Os atentados de 2021 e de 2022 prepararam o caminho para um trágico trigésimo aniversário de Oslo, com, no dia 6 de outubro, o maior número de palestinianos mortos (mais de 200 e cerca de trinta israelitas) desde 2005. “A História não começou a 7 de outubro”: o que precede é uma tentativa de explicar o que esta evocação exige em termos de contexto. Dezasseis anos de bloqueio total a Gaza criaram as condições para a eliminação social, económica, simbólica e física da Faixa de Gaza e de tudo o que ela representa.
As seis semanas que acabam de passar constituíram o clímax exterminista do projeto colonial israelita, agora levado a cabo por um governo comprovadamente fascista. Por seu lado, a comunidade internacional, através dos seus donativos e programas humanitários, ter-se-á aplicado a suportar os gigantescos custos financeiros da “normalidade” de uma ocupação que parece ter renunciado completamente a contestar, mesmo que apenas formalmente, ao ponto de aceitar chorar com o agressor colonial disfarçado de vítima.
Para concluir
O Hamas, na sua história, pode ser criticado, acusado de corrupção e de abusos, ou de um condenável recurso à coação e à violência. O partido pode, com razão, ser criticado à luz dos últimos anos, e muitos habitantes de Gaza, condenados ao maior desespero, não parecem ter hesitado em fazê-lo [30].
Isso não pode apagar as condições de isolamento e de ostracismo, de profunda desintegração social, económica e familiar, e de emergência de autênticos fundamentalismos concorrentes, que o partido “no poder” em Gaza se viu obrigado a enfrentar, pelo que continua a ser possível e indispensável uma outra narrativa, que comece por reconhecer o papel histórico do Hamas como organização social e como interlocutor político pragmático e legítimo, que lhe foi absoluta e catastroficamente negado.
O dia 7 de outubro é também o produto dessa negação, e a pretensão de acabar com o Hamas de uma vez por todas é, na melhor das hipóteses, a persistência numa lógica cega de fracasso; na pior das hipóteses, eliminar o Hamas não passa de um pretexto para a limpeza étnica em curso no meio de uma involução genocida, como muitos concordaram durante semanas.
Muitas pessoas ficaram comovidas e chocadas com o 7 de outubro – que, com o passar das semanas, parece ter deixado muito por saber sobre os factos em si, como sugerem as concessões oficiais e os testemunhos dos sobreviventes – por razões óbvias, dado o número e a natureza das vítimas, o efeito de surpresa e, sobretudo, o horror suscitado pelos primeiros testemunhos, para os quais a prudência deveria ter estado na ordem do dia: nenhuma aquiescência possível a este novo imperativo de “união sagrada”.
Para outros, aliás, a “monstruosidade” do 7 de outubro – que, evidentemente, nunca foi igual à de Abu Ghraib, Guatanamo, Bagram ou, mais perto do assunto, das centenas de mortos e mutilados nas Grandes Marchas do Retorno em 2018-19 e em 2023 até ao 6 de outubro – deve-se também ao desfasamento antinatural em relação à expetativa intuitiva de destruição humana que se presume pertencer às prerrogativas normais das administrações imperiais. A este respeito, admitamos que um certo clamor em torno do 7 de outubro se inscreve noutras expectativas e cumpre uma outra função: tornar o 7 de outubro excecional, magnificar o horror deste acontecimento “fora do comum”, é também arrancá-lo ao acontecimento e ao quadro causal de que é, no entanto, parte inseparável.
E é também, por isso mesmo, realizar de novo o gesto de apagamento que permitirá preservar o essencial, isto é, o regime normal de brutalização do colonizado. Nisto, um certo registo de emoção excecionalista – com toda a sua injunção ao consenso prévio – participa no trabalho incessante de descontextualização já assegurado pelas analogias perentórias tão comuns aos atentados terroristas de Paris em 2015, analogias entre acontecimentos que, no entanto, são irredutíveis uns aos outros. A não ser que se coloque Benyamin Netanyahu como o teórico supremo do princípio terrorista como motor fundamental da ordem mundial.
“A História não começou no dia 7 de outubro” é uma afirmação e uma exigência justas e indispensáveis, e que traz consigo uma força polémica cuja importância nunca deixemos de ter em conta.
Notas
[1] Cf. Sobre este tema, veja-se o apaixonante trabalho etnográfico e histórico de Victoria Clark: Allies for Armageddon, The Rise of Christian Zionism, Yale University Press, 2007, e igualmente, Clifford A. Kiracofe, Dark Crusade: Christian Zionism and US Foreign Policy, I.B.Tauris, 2009.
[2] A investigadora Sara Roym fez um estudo particularmente detalhado num trabalho de grande dimensão e valor largamente reconhecido, Hamas and Civil Society in Gaza. Engaging the Islamist Social Sector [2011], Princeton University Press, 2014
[3] Jerome Slater, Mythologies Without End: the US, Israel, and the Arab-Israeli Conflict 1917-2020, Oxford UP, 2021, p.284
[4] R. Hollis, Britain and the Middle East in the 9/11 Era, Wiley-Blackwell, 2010, p.150
[5] Sara Roy, Unsilencing Gaza. Reflections on Resistance, Pluto Press, 2021, p.4
[6] J-P Filiu, Histoire de Gaza, [2012], Pluriel, 2015, p.402-403.
[7] J. Slater, ibid., p.284-285
[8] Citado por Slater, ibid., p.285; veja-se igualmente, Roy, Hamas …, op. cit., p.210.
[9] Filiu, op.cit., p.412
[10] Sara Roy, Hamas and Civil Society in Gaza, op.cit., p.41
[11] «Malgré l’offensive militaire, le Hamas tient tête à Israël», Le Monde, avec AFP et Reuters, 30 juin 2006
[12] S. Roy, Hamas…, P.41
[13] Hollis, op. cit., 155
[14] R. Hollis, op. CitIbid., p.156
[15] ibid. p.148, 154, 155, e Sara Roy, Hamas… op. cit., p.49 et 280 nota 114.
[16] Sara Roy, Unsilencing…, p. 36.
[17] O Conselho da Europa coloca a ala militar do Hamas, as brigadas Izz al-Din Qassam na lista das organizações terroristas. A organização politica foi acrescentada em 2003. Esta decisão foi anulada em 2014 a congelação das ajudas financeiras manteve-se.
[18] Filiu, op. cit. p. 409. Veja-se igualmente os efeitos do Mecanismo de Reconstrução de Gaza (GRM) Material Monitoring Units Projets, relativo ao controlo da entrada de materiais construção depois de 2014, em S Roy, Unsilencing Gaza,… op. cit., p.71 (cf. Igualmente o seu trabalho The Gaza Strip : the Political Economy of De-development, Institute for Palestine Studies, 2016)
[19] Citado em «US plotted to overthrow Hamas after election victory», The Guardian, 4 mars 2008, https://www.theguardian.com
[20] S. Roy, Hamas… op. cit., p.48-49
[21] S. Roy, Unsilencing Gaza… op. cit., p.29, 30
[22] Em The Gaza Strip: the Political Economy of De-development, op. cit.
[23] S. Roy, Unsilencing…, op. cit, p.44
[24] cf. B Netanyahu, Fighting Terrorism: How Democracies Can Defeat Domestic and International Terrorists, Allisons & Busby, 1995. Este pequeno livro é interessante em retrospetiva devido à notável longevidade política do seu autor. Fighting Terrorism reduziu os assuntos mundiais a um único enigma, o terrorismo, e, ao fazê-lo, trabalhou para a fusão neoconservadora dos interesses israelitas e americanos, um projeto que já justificava futuros ataques às liberdades civis e ajudou a construir a nova era do racismo orientalista que chegou ao poder depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, sob a capa do “choque de civilizações”, um tema claramente da preferência do autor.
[25] S Roy, Hamas… op. cit., p. 97-100
[26] https://www.cbc.ca/news/world/canada-united-nations-israel-gaza-war-1.7032739
[27] https://www.middleeasteye.net/fr/opinion-fr/morsi-vs-sissi-qui-vraiment-soutenu-les-palestiniens-dans-leur-detresse ; sobre a atitude dos media egípcios pró-governamentais face aos cinquenta dias de bombardeamentos em 2014, veja-se https://www.france24.com/en/20140720-egyptian-media-applauds-israel-gaza-offensive
[28] S Roy, Unsilencing…n op. cit., p.54 & 66
[29] S Roy, ibid. … p.98
[30] Nas manifestacões nem sempre desporvidas, elas também, de questões de fações, veja-se: Motasem Ad Dalloul, «What’s behind Gaza’s anti-Hamas protests», 24 ars 2019, https://www.middleeasteye.net
O autor: Thierry Labissa é docente na Universidade de Nanterre e membro do NPA-Nouveau Parti Anticapitaliste. Autor em l’Anticapitaliste.org



